Torradas
"Pão pão pão pão pão, pão. Com manteiga é tão bão."
Caso não conheçam, o subtítulo é parte da letra deste clássico tuga e banda sonora recomendada para a leitura desta crónica:
Fala-se pouco de torradas a meu ver. Torradas são o lanche perfeito. São boas em qualquer estação do ano, só precisam de dois ingredientes básicos — pão e manteiga — e a sua confeção é bastante simples, é só preciso aquecer o pão. Se quiserem ser mais rústicos, podem substituir a manteiga por azeite e uns grãos de sal grosso por cima, mas aí convém que o pão seja mesmo de qualidade a meu ver. Por contrapartida, se forem hipsters ou tiverem um estabelecimento onde se serve brunch, são autorizados a meter orégãos.
Mesmo as “piores” torradas são boas. Eu não dispenso uma boa torrada em pão alentejano, não fosse eu alentejano e não fosse o Alentejo a terra sagrada do pão. Mesmo aquela torrada básica dos cafés portugueses toda besuntada de manteiga naquele pão mais esponjoso que se o espremermos a manteiga escorre; mesmo essa torrada é boa.
Claro que o Miguel Esteves Cardoso já escreveu sobre torradas e nos deixou esta pérola de absoluta verdade:
a torrada é um pequeno milagre mandado por Deus para compensar todas as dificuldades da culinária e da vida.
Não podia concordar mais. Pode faltar tudo em casa, mas que não falte pão e manteiga. Para além disso, ao torrarmos o pão conseguimos aproveitar pão menos fresco com facilidade.
É de estranhar, então, porque é que a torrada é uma coisa tão portuguesa e não tão universal como seria de esperar. Falo por experiência própria.
Fiz Erasmus em Itália e no meu primeiro pequeno-almoço de café naquele país, indeciso sobre o que escolher, pensei “Bem, se tomasse o pequeno-almoço em Portugal num café pediria uma torrada e um leite com chocolate1 e as nossas culturas não são assim tão diferentes”. Querendo respeitar a língua e aprender italiano, deicidi pedir em italiano, depois, claro, de verificar no tradutor como traduzir “torrada.” Confiante, disse algo como “Scusa, volevo pane tostato con burro, per favore.”
(Só um pequeno parêntesis rápido. No Duolingo uma vez apareceu-me a frase “C’è una mosca nel burro” e eu, todo galifão, traduzi para “Está uma mosca no burro.” Ora “burro” é manteiga em italiano. O burro, desta vez, tinha sido eu.)
A senhora virou-se para mim e disse “Cosa??”, como se eu tivesse pedido uns sapatos de inverno e estivesse na Seaside. Abanou a cabeça e eu resignei-me com um brioche2. “E da bere?”, perguntou ela ainda enquanto fazia um gesto de beber. “Latte al cioccolato.”, respondi eu, pensando que desta vez não haveria grande problema. Não só houve como a senhora chamou a gerente porque não percebia nada do que estava a dizer. Repeti o pedido e ela fez-me um gesto clássico de “Não te preocupes, eu sei o que queres.” Encheu-me um copo com leite daquelas clássicas máquinas de café que faz aquele som shhhhhhouuuuum, pegou numa colherinha de café com a qual colheu um pouco de cacau em pó, deitou por cima do leite com muito cuidado, batendo na colher para não derramar o cacau todo e entregou-me o copo dizendo “Va bene?” E eu “Va bene.”, enquanto encolhia os ombros mentalmente e mexia eu próprio o meu “leite com chocolate” muito literal.
Serve esta historieta para contar que foi assim que descobri a importância que o pão tinha na minha vida, ou melhor, o quão culturalmente enraizado uma coisa tão simples quanto uma torrada estava na minha pessoa. A meio do Erasmus vim a Portugal e a minha mãe, sabendo do meu calvário, comprou-me uma torradeira de frigideira: basicamente uma artimanha de metal e que tem uma grelha para torrar o pão que se pode meter sobre os bicos do fogão. Radiante, fui logo ao supermercado comprar pão e manteiga. Mas tive uma tamanha desilusão: a manteiga não era como as nossas, mal tinha sal. Pior: partilhei este momento com o meu colega de casa espanhol que também tinha saudades de torradas. Qual não foi o meu espanto quando ele me disse que o que faltava era, não sal, como tinha dito eu, mas açúcar. Açúcar! Que sacrilégio!
Acho que no nosso país temos tão boas torradas porque temos pães e manteigas de excelência. Já falei do pão; quanto à manteiga a minha favorita é a Primor. Mas lembro-me de debater isso com colegas na faculdade. Uns preferiam Milhafre, outros Açores. Os que preferiam Planta deixei de ser amigo deles. Mas digam-me, em que outro país se debate com tanto afinco a qualidade das manteigas? Só aqui. O único outro país que me lembro que se calhar tenha tão bom pão e manteiga, simultaneamente, seja talvez a França, mas lá eles preferem a baguete e que eu saiba não têm uma paixão às torradas como nós. Têm croque monsieur e “french toast” — na verdade “golden slices” porque são as nossas fatias douradas — mas torradas como as nossas não creio que existam. O que é muito interessante porque a nível europeu temos uma cultura tremenda de enchidos e queijos e pão e manteiga, uma variedade e qualidade riquíssimas, e isso sempre me espantou porque tipo não são os animais os mesmos?3 Mesmo em climas muito semelhantes como Portugal, Espanha e Itália.
Enfim, não consigo viver sem pão, querem o quê? Viver fora fez-me perceber isso. De tal forma que quando vivi na República Dominicana aprendi a fazer pão de massa mãe em casa, visto ser impossível comprar pão bom lá e honrando assim as minhas raízes alentejanas. Até me saí bem eu acho. E foi definitivamente o pão mais fresco que alguma vez comi. O único problema é que o pão demorava quase mais tempo a fazer do que a comer. Não só porque é um processo moroso — ainda que recompensador — mas também porque devorávamos o pão ultra fresco em menos de 48 horas.
Uma vez levei pão que tinha feito para o trabalho da minha namorada e andei a distribuir pelas suas colegas francesas. Ofereci pão a uma estagiária nova que me respondeu secamente “Ça me dit rien.” Aqui está a grande diferença entre nós e os franceses em relação ao pão: a atitude. Isso não me diz nada? Como assim? O que não me diz nada é essa resposta! O que é que não te diz nada? Não gostas de pão? Não gostas que eu tenha feito pão? Não gostas que te tenha oferecido pão? Ainda hoje essa resposta me atormenta. Quão mal tem de estar uma pessoa na vida para recusar pão? Pelo menos desta forma. Um simples “não, obrigado.” tinha servido.
Nunca4 irei recusar pão na vida. Pão é vida. Com manteiga é o paraíso. E temos feito um muito mau trabalho em comunicá-lo ao resto do mundo, parece-me, em sermos verdadeiros embaixadores do pão. Nem aparecemos nesta página da Wikipedia dedicada à “Bread Culture”! Como assim não aparecemos? Isso não fere o nosso orgulho nacional? Porque é que não se discute isto na Assembleia da República? Menos burcas e mais buchas por favor!
E mesmo em relação às torradas, encontrei este site de autênticos monstros Frakenstein de torradas. E onde estamos nós? Nenhures! Sou só eu que me indigno com isto? Nos Países Baixos metem chocolate em sprinkles nas torradas! Chocolate, malta! Mas onde é que já se viu??5 E depois Europe-South é só Espanha e Itália?? Metem ambos tomate no pão, só lhe chamam é coisas diferentes!
Acho que devíamos refletir seriamente sobre isto meus amigos. Devíamos espalhar a mensagem da torrada divina. Recuso-me a que Portugal não seja reconhecido pelo seu pão tostado com manteiga. Devia ser um símbolo nacional. Já temos o Pastel de Nata, muito bem. Mas então e quando não nos apetece nada doce? Por isso escrevi este texto. Para preservar a dignidade da torrada e para que não a esqueçamos. Não deixemos morrer a torrada. Passem a a palavra por favor. Com sorte ainda criamos uma nova religião onde vamos à missa e fazemos todos filinha para comer pão com manteiga como deve ser em vez daquele pão insípido. Aposto que convertíamos uns quantos crentes. Pensem nisso.
Obrigado por me leres!
Caso queiras apoiar a minha escrita, podes:
Subscrever, claro, mas também, meter gosto, comentar, partilhar. É extremamente gratificante receber feedback ou ver que alguém partilha o que escrevo 🙂
Dizer a alguém ou enviar diretamente um dos meus textos a alguém que aches que poderá gostar.
Fazer um donativo:
Bem sei, muitos de vós beberão um galão. Eu não gosto de café. É talvez o traço menos português que tenho. Bebo, sim, chá.
Que é como quem diz croissant em italiano. Não estou a gozar, é verdade.
Esta parte os meus amigos vegan podem saltar à frente. Ah, se calhar agora já leram. Isto devia ter sido uma nota de antemão e não rodapé, desculpem.
Nunca digas nunca André.
Nos Países Baixos, pelos vistos André. Aí já se viu. Tu próprio o disseste.



Uma vez tive um meltdown em Lisboa porque queria tomar o pequeno-almoço e não havia pão caseiro em lado nenhum. Só vianas e papos-secos e carcaças e pão de forma. Tudo farinha do mesmo saco. Estas coisas deitam uma pessoa abaixo.
Acho que as torradas estão felizes hoje. Fizeste um belo trabalho por elas.
(Só faltou aqui a fotografia de quando a senhora da padaria te fez uma tosta mista em forma de coração. Isso também foi amor)