Prelúdio - Fome de tempo
Um prelúdio de uma história que estou a escrever. Espero que fiquem a ansiar por mais.
"Eureka! Sois um génio Eugénio!", exclamou o inventor, extasiado. "Ha ha! Sereis finalmente reconhecido como o maior inventor de todo o tempo! Finalmente conseguireis pôr em prática todas as ideias para as quais não tivestes tempo!" Após anos de pesquisa e de experiências falhadas, tinha por fim conseguido inventar a sua obra prima.
O seu laboratório era uma selva de engrenagens, válvulas e relógios de todos os tamanhos e feitios. A nuvem de fumo e de vapor que preenchia a sala impregnava-se na sua roupa que parecia estar colada à pele, visto que já não a trocava desde a última convenção mundial de inventores. Fazia cinco anos já. Continuava com o mesmo fraque, camisa branca, calças, sapatos, cartola e gravata. Tudo em tons de preto. Tinha ainda até o seu monóculo posto. Obviamente, cada um destes elementos se tinha desgastado terrivelmente com todas as experiências e a vida que levava. E poupemo-nos de falar do cheiro, do suor, da imundícia, por favor. Digamos meramente que Eugénio era o ermita mais elegante do mundo. O seu bigode negro, outrora aparado ao mais minucioso detalhe, estava agora completamente camuflado no meio da sua barba selvagem. E o seu cabelo desgrenhado tinha crescido para fora da cartola, asfixiados que estavam. Como os ramos de uma planta na sombra cujas folhas desesperam por luz solar.
Tinha ficado completamente obcecado com a última ideia que tinha tido. Apenas parava para comer e beber qualquer coisa quando sentia necessidade - ou ir à casa de banho quando tinha necessidades - e dormir, mas mal e porcamente porque achava que era uma perda de tempo e porque imundo já ele estava. Tempo. É afinal disto que trata esta história.
Eugénio pegou, algo nervoso, no objeto que tinha diante de si na sua bancada, como se de um troféu se tratasse. De facto parecia-se muito com um troféu: Era grande para uma ampulheta, tinha de lhe pegar com as duas mãos. E embora fosse de aparência simples, a sua armação de bronze e o seu tamanho conferiam-lhe peso, imponência. Havia no entanto um pormenor que destoava: estava vazia.
Colocou-a numa garra robótica de dois dedos que a agarrou pelo istmo. Eugénio olhou para o seu calendário mecânico, automático claro. "Uma década parece-me bem, para começar. Ora estamos em 1864... 1864! Mas... como? Cinco anos.. bem, não importa, agora tereis todo o tempo do mundo Eugénio! O ano em que estais é irrelevante", disse enquanto esboçava um sorriso orgulhoso. "Mas ponhamos quinze, só para compensar estes últimos cinco então. Que se dane, vinte!", rematou, enquanto dava corda a um controlador de molas que marcava agora vinte. Em seguida, abriu uma escotilha no topo da ampulheta e verteu, primeiro água, e depois açúcar lá para dentro. Esperou que os ingredientes se esgueirassem pelo istmo e que o açúcar depositasse na água em baixo. Depois, pensou "Cá vai disto!", e, com um suspiro, puxou uma alavanca na mesa. A garra começou, lentamente mas de forma constante, a girar. Eugénio esfregou as mãos enquanto olhava, com um olhar maníaco, tresloucado.
A garra ia ganhando velocidade. A cada volta completa, cada bulbo emitia uma luz reluzente e pulsante, cada vez mais forte. Com a velocidade, parecia agora um disco luminoso, intermitente. Até que, uma campainha soou. Tinha completado as vinte voltas. A este ponto começou a desacelerar até que parou. No bulbo superior flutuava agora um poliedro regular de vinte faces - um icosaedro - translúcido. No seu interior, por sua vez, uma letra C balançava e ressaltava entre as faces do poliedro.
"Um século? Deveis ter calculado mal o rácio centrífugo-temporal Eugénio... Não importa, à dúzia é mais barato! Ao século, no caso", pensou, esboçando ao mesmo tempo um sorriso maquiavélico.
Abriu a escotilha superior da ampulheta e retirou de lá o poliedro, com todo o cuidado. Era pouco maior do que uma noz. "O nome Eugénio Leitão Lázaro será finalmente reconhecido nos quatro cantos do mundo!", murmurou para si. Pôs o poliedro na boca, e trincou. Ouviu-se um estouro abafado e uma torrente de líquido extremamente doce invadiu as suas papilas gustativas. Até comparando com a doçaria tradicional portuguesa, isto era uma overdose de açúcar caramba! Engoliu.
Por um momento, nada parecia ter acontecido, e Eugénio sentiu-se desiludido. Mas de repente, uma dor forte tomou conta dele e de todo o seu corpo. Contorcia-se de dor, doía-lhe tudo: a cabeça, a barriga, as juntas, tinha dificuldade em respirar. Os seus órgãos internos, estariam eles a falhar? Sentiu-se fraco, débil, mais... velho? Foi tudo tão rápido. Apoiou-se na bancada, e mesmo antes de colapsar, olhou para a ampulheta. No bulbo inferior, pareceu ver de relance uma forma negra, indistinguível e em constante mutação, caótica. E por fim, nada.
Este prelúdio é parte de uma história maior que estou a escrever. Se quiseres podes ler o primeiro capítulo aqui:
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Gostei muitoooo! Eugênio me lembrou um pouco o José Acardio de “Cem anos de solidão” hahahah continue escrevendo por favor ❤️
Engraçado, não estaria à espera que o meu texto pudesse ser interpretado em português do Brasil, mas tem muita piada quando começo a ler um texto em português e acho que é um texto português mas depois é um texto brasileiro e tenho de parar e adaptar a voz com que leio o texto x) Não sei se isso acontece ao contrário também.
Boa! Já agora, se tiveres recomendações de livros brasileiros (clássicos ou até se calhar coisas mais modernas) sou todo ouvidos! 😁
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