Aparentemente o nada era branco. E silencioso também. Não se ouvia… bom, nada.
O que era estranho pois Sofia tinha-se virado para trás para observar o Prof. Pardal e este estava a abrir e fechar o bico. Mas nem fora dos headphones Sofia escutava nada.
O pássaro tentava também levantar voo, mas sem efeito. O que se passava? De repente, tentou falar, mas antes sequer que as palavras se formassem no céu da boca, um espirro apareceu-lhe mais acima na mucosa nasal. Tentou inspirar, mas não conseguiu. Parecia que o ar queria sair cá para fora sem pagar portagem, abalroando as barreiras de segurança das vias respiratórias. E para piorar a situação, parecia que o peito ia explodir uma e outra e outra vez, que estava presa num algoritmo de recursão infinita, que havia um bug no sistema… até que, por fim, espirrou. Escutou nos headphones um final de frase do pardal:
“...rrer porra!”
Ainda não se tinha recomposto quando escutou uma voz incorpórea dizer:
“Vácuo.”
Sofia deu um pulo! Olhou para a esquerda.
“Não tendes de quê.”, escutou ela de novo.
O pardal disse uma asneira que Sofia já tinha ouvido os meninos lá na escola dizer.
Ainda ofegante e atarantada, olhou com atenção para onde vinha a voz: Um bigode, uma cartola e um monóculo flutuavam por cima de um fraque completo. Ao lado deste, uma bengala com uma ampulheta no punho bamboleava de um lado para o outro. O que era isto, um fato falante?? Sofia ia gritar!
“Peço gentilmente que reconsideres esse grito ou extingo a bolha e corto-vos o pio.”, disse a figura, adotando uma pose como se tivesse levantado um dedo no vácuo. Aquela voz parecia-lhes chegar de nenhum e de todo o lado ao mesmo tempo. Sofia conteve-se. Ao contrário do pardal: “Mas quem és tu?!” e tinha pontuado a frase com uma palavra que rima com espantalho.
“Que tamanha desfaçatez! Quanta ingratidão! Acabo de lhes salvar a vida e é assim que respondeis!”, ripostou a voz circum-ambiente. Aquela aparência deixava Sofia desconfortável, quase nauseabunda. Olhando melhor parecia vislumbrar de vez em quando ora um nariz por cima do bigode, ora umas cavidades oculares, o desenho de uns lábios… tudo branco como a neve. Mas logo no momento seguinte, esvaíam-se. Outras vezes parecia que uma massa de fumo branco vestia o fato. Isso deixava-a tonta. Espirrou mais uma vez, desta vez, sem problema. Agarrou o dedal. Ganhou coragem. Falou.
“Desculpe, o meu amigo pardal não tem muito boas maneiras. É só que…”, inspirou fundo. O resto da frase saiu de rajada da boca de Sofia: “não sabemos o que se passa, onde estamos, porque não conseguíamos respirar ou falar ou voar, o que é que aconteceu ou quem é!”
“Quantas perguntas para uma criatura tão pequena. Por quem sois?”, disse a forma.
Sofia não percebeu a pergunta, na verdade. Portanto disse simplesmente:
“Eu sou a Sofia Olga Silva. Muito prazer. E este é o meu companheiro, o Prof. Pardal.”
“Boas oh gafanhoto albino.”
“Pardal!”
“Hmmph. Não fosse eu precisar de vós…”, murmurou o espetro para dentro.
Deteve-se um momento. O silêncio preencheu o vácuo. Era muito estranho. Sofia não estava habituada ao silêncio. A este silêncio. Mesmo nos dias mais calmos, nos passeios entre a escola e o orfanato, havia sempre algum burburinho do vento nas folhas das árvores ou de carros ao longe ou barulhos das vizinhas de quarto no orfanato. Aqui, porém, o silêncio era total, quase artificial. Sofia sabia que o som não se propagava no vácuo por causa dos astronautas e porque em Física e Química tinham feito a experiência de pôr um telemóvel a tocar dentro de um recipiente de vidro ligado a um aspirador de ar e assim que retiraram o ar todo de dentro do recipiente, deixaram de ouvir. A professora, para além disso, disse para tentarem mover a tampa do recipiente, mas era impossível! Ela explicou que como não havia ar lá dentro, o ar de fora — todo o ar de fora — exercia uma pressão tal sobre a tampa que era impossível movê-la. Lembrou-se de quando estava para espirrar e o peito quase explodira. Era a mesma coisa que o recipiente mas ao contrário: o ar quer sempre ir para onde há menos ar, tinha de ser isso! Os olhos encheram-se de terror com o pensamento. Mas então, por que não aconteceu nada? E mesmo agora quando falava, parecia que a sua voz era abafada, que não ressoava. E o que era isto à sua volta? Uma bolha… de ar?
“Isso mesmo, uma bolha de ar.”, respondeu a voz.
“Mas como é que…”, começou Sofia.
O fantasma branco pareceu revirar os olhos, enfadado.
“Vamos lá acelerar isto. O meu nome é Eugénio Leitão Lázaro, fantasma do tempo e maior inventor do mundo.” disse a personagem, de colete inchado. “Ao vosso dispor.” e o fato tomou a forma de uma vénia.
“He! E depois eu é que sou bazófio!”, disse o pardal.
“O maior inventor do mundo? Eugénio? Nunca ouvi falar…”, confessou Sofia.
A face de Eugénio só não corou porque, por um lado, ele não tinha bem uma face, e por outro porque, a ter alguma cor, seria mesmo cor de giz.
“Isso foi só porque eu cometi um erro de cálculo no rácio centrífugo-temporal!”, angustiou-se Eugénio. Ao ver que a Sofia continuava ainda confusa. Eugénio suspirou e prosseguiu:
“Vós chegastes aqui a partir do meu antigo laboratório, não foi? Virastes a ampulheta que estava na mesa ao centro, por certo.”
“Sim.”
“Pois bem, essa invenção é uma máquina do tempo. Perdão, uma máquina de tempo!”
“Uma máquina de tempo? Como assim? Para viajar no tempo?”, perguntou Sofia, confusa mas intrigadíssima.
“De todo, minha pequena! Disse-o corretamente da segunda vez. É uma máquina de tempo. Uma máquina que fabrica tempo, para ser mais preciso.”, rematou Eugénio. Os olhos de Sofia quase que duplicaram de tamanho e ela abriu a boca de espanto e encanto. Eugénio prosseguiu.
“Toda a gente assume a necessidade de querer ter mais tempo para os seus afazeres, pois não? Pois bem, e porque não fabricar tempo? Assim como se produz energia a vapor. De certo que tem de ser possível criar tempo, não?, pensei eu. Após anos de investigação, descobri a solução. Para gerar tempo tive de me perder no tempo de tal forma que para mim o próprio conceito de tempo deixou de fazer sentido. Embrenhei-me na minha investigação de tal ordem que passaram anos e anos sem que desse conta. Mas compensou pois no final arranjei uma forma de conseguir converter energia cinética de forma a materializar tempo. Tudo o que precisei foi de… uma receita!”
“Uma receita?”, perguntaram Sofia e Prof. Pardal em coro.
“Precisamente. De que servia saber materializar tempo se esse tempo ficasse enclausurado sob um qualquer objeto imútavel e inútil como uma jarra caríssima da Vista Alegre que nunca é usada. Não não. Para que esta teoria me fosse útil, precisava que a materialização temporal não ficasse cristalizada sob a forma de objeto, precisei de arranjar um veículo para que o tempo ficasse encapsulado sob forma material, mas que, após um qualquer processo mecânico-físico-químico, esse tempo voltasse a ser acessível a qualquer humano e útil para ele mesmo poder usufruir dele na sua forma intangível.”
“Oh chefe, não tou a perceber nada do que tás p’raí a dizer meu, he!”, refilou o Prof. Pardal.
“Néscio…”, grunhiu Eugénio entre os dentes que não tinha.
“Hmm, acho que estou a perceber. Conseguiu materializar tempo. Mas precisava de o voltar a transformar em tempo útil. Falou em receita, quer dizer que…” Sofia estalou os dedos. “transformou o tempo nalgo comestível?”, arriscou Sofia. O monóculo flutuante arqueou-se mais sobre o bigode.
“Exatamente. Vejo que metade de vós não é totalmente inepta.” O pardal pareceu levantar apenas uma pena da sua asa na direção do fantasma.
“Eis que, já que tinha de tornar tempo comestível, desenvolvi então uma receita de chocolates - que estavam bastante em voga na minha época. Criei a ampulheta que viram, coloquei os ingredientes, e fi-la rodar com tal velocidade — no sentido anti-horário naturalmente — que consegui cozinhar tempo. Foi assim que criei Chochronolates, como os apelidei, pela primeira vez. E pela última vez, em vida.” Sofia estava agarrada a cada palavra que este vulto branco lhe dirigia. Já não sentia náuseas. Mas espirrou de novo.
“Santinho. Só que cometi um erro de cálculo! Criei demasiado tempo de uma vez. E ao fazê-lo, não só o tempo restante de vida me foi roubado, como creio ter criado esta fenda no espaço-tempo, este limbo, este lugar danado ao qual chamo Nenhures. E fui condenado a viver aqui para sempre nesta forma etérea, sem passado nem futuro nem presente.”
Sofia olhou em volta, desta vez com mais calma. A superfície sob a qual assentavam os pés parecia ondular ligeiramente. Na verdade, a sensação que dava é que Sofia parecia estar mesmo a caminhar sobre água. Era uma sensação incrível! Olhou para baixo. Não via fim à vista, e quanto mais profundo, mais escuro parecia ficar. Olhando ao redor, esta superfície parecia estender-se em todas as direções até ao horizonte. De resto só via branco. Decidiu olhar para cima desta vez. Lá no alto, viu uma nuvem negra que parecia ocupar também todas as direções. Também parecia ficar mais escura com a altitude. De vez em quando parecia ver relâmpagos. Estremeceu.
“A Nuvem da Incerteza e o Mar das Memórias.”, disse Eugénio.
“Foi o Eugénio que...”
“Para si é Doutor, menina!”
“Desculpe! Foi o Doutor Eugénio que deu esses nomes?” A cartola anuiu.
“E…”, Sofia hesitou. Procurava a melhor palavra para descrever a situação do fantasma. Não a achou, então continuou simplesmente: “vive aqui sozinho? Não há mais ninguém? Há quanto tempo vive aqui?”
“Viver não me parece ser a palavra adequada, pequena.” “Bolas!”, pensou Sofia. Eugénio continuou: “Existo. Embora por vezes nem disso tenha a certeza.” Fez uma pausa. “Gostas mesmo de fazer perguntas não gostas, pequena? Pois bem, já que assim é, escutai com atenção. Esta é a minha história.”
Este capítulo é parte de uma história maior que estou a escrever. Se quiseres podes ler os outros capítulos disponíveis aqui:
Eugénio e Sofia em A Ampulheta Vazia
A inspiração para o nome do limbo na minha história veio do título do Substack da minha amiga Nenhures.
Não sei se vou publicar mais capítulos em breve. Quero ainda alinhavar a história mais um pouco antes de partilhar mais. Mas queria muito mostrar-vos um pouco do mundo que estou a construir. Espero que gostem!
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Estou a adorar. A ideia sa maquina de tempo é original.